Há mais de um século que Fátima está plantada na história como uma mensagem e um lugar que expressam o mais íntimo do mistério de Deus: a misericórdia. Após o 2020 marcante que atravessámos, o Santuário prepara-se para viver 2021 como um profundo e itinerário de empatia, em que a misericórdia divina que lhe cabe anunciar e significar se ofereça à humanidade ferida como fonte de confiança e de sentido que lhe permita erguer-se da experiência traumática da pandemia, qualquer que venha a ser a evolução dos acontecimentos.
O confronto da nossa geração com a memória perdida, ou intencionalmente ocultada, da vulnerabilidade que a pandemia provocou, suscita uma consciência renovada e profunda da fragilidade humana que a todos é comum. O sofrimento e o medo que esta experiência suscita é radical e as interrogações existenciais que emergem não são de resposta fácil, nem tão somente de ordem intelectual, precisamente
porque são existenciais. Pedem a oferta pastoral de um caminho de sentido em que seja possível fazer a experiência de um Deus que se faz próximo e acompanha os seus filhos na tribulação e na procura. Um século depois, o tempo pede a Deus o que pedia nas primeiras décadas do século XX. O modo como Deus se apresentou à humanidade em Fátima é a matriz maternal do modo como Fátima, fiel à sua missão, se quer apresentar hoje. Recordemos: em junho de 1917, Nossa Senhora anuncia a partida em breve para o céu dos dois pastorinhos irmãos, o Francisco e a Jacinta. A causa das suas mortes, sabemo-lo nós, foi a pandemia da gripe espanhola, que vitimou o Francisco em 1918 e a Jacinta em 1920. À Lúcia, que antevia a solidão em que a morte dos priminhos a deixaria, a Senhora dirigiu esta palavras: E tu sofres muito? Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus. Nelas se inspira o Santuário de Fátima para atravessar pastoralmente o ano de 1921, projetando um itinerário empático de compaixão pelo mundo que dê corpo à sua vocação de lugar que expressa o mistério do coração materno que se oferece como refúgio e caminho para Deus. Fátima, como a Senhora que interroga Lúcia, abre-se à expressão do sofrimento das pessoas, quer conhecê- -lo e oferecer oportunidades e interlocutores para que ele se diga e seja escutado. Fátima quer fazer-se exortação compadecida e compassiva ao alento e à confiança e oferecer-se como presença solícita na solidão e na tribulação que atravessam os filhos deste tempo. Fátima quer fazer-se apelo à recriação de ritmos de vida centrada em corações unificados em Deus e solidários com os outros.
A relevância atual da mensagem que o Santuário serve e anuncia manifesta-se plenamente no presente contexto. De facto, a travessia do deserto que caracteriza o tempo ergue os olhos da humanidade para Deus, porque manifesta a falência dos falsos absolutos em que a cultura assentava os seus fundamentos e as sociedades alicerçavam o seu funcionamento. O nuclear apelo da mensagem à conversão e à emenda da vida faz-se, neste tempo de recapitulação, convite à opção por novos estilos de realização humana, mais fraterna e amigável, como lembra o Papa Francisco na recente encíclica. Além disso, a responsabilização de cada um pelos outros, também central na espiritualidade de Fátima, revela-se profética para o futuro próximo da humanidade, que terá como tarefa maior o processo de imaginar novos modos e modelos de convivência social, que não gere excluídos nem deixe ninguém para trás.
À necessidade de consolação e esperança generalizada, Fátima oferece a figura da Mãe condoída e silenciosa que acolhe os seus filhos, os escuta e conforta. Nossa Senhora de Fátima é a imagem da Mãe que se faz próxima e, na sua proximidade, significa a própria proximidade de Deus que não é indiferente ao sofrimento dos seus filhos. É “o Senhor que levanta os fracos”, como reza o lema pastoral definido pelo Santuário para este ano, convidando todos a louvar a Deus.
José Nuno Silva
Capelão do Santuário de Fátima
Artigo publicado na Stella n.701 | Janeiro 2021